Primeira Pessoa
Michael Hardt: «Nada demora tanto tempo a resolver como um falso problema.»
Afonso Dias Ramos

Michael Hardt, um dos teóricos políticos mais conceituados do nosso tempo, conversa com a Electra sobre amor e revolução, linguagem e libertação, e o seu novo projecto acerca da necessidade urgente de voltar a olhar para os movimentos revolucionários dos anos 70.

michael hardt

Toni Negri e Michael Hardt © Fotografia: Christian Werner e Alexandra Weltz

 

Michael Hardt é filósofo político e professor de Literatura e Estudos Românicos na Universidade de Duke. Escreveu, com Toni Negri, uma das trilogias mais importantes de política contemporânea e teoria crítica — Empire (2000); Multitude (2004); e Commonwealth (2008) —, uma leitura radical da economia política e um manifesto por mudanças revolucionárias na era do capital global. Esta conversa teve lugar poucos meses antes da morte de Negri (1933–2023), o filósofo que foi uma referência do pensamento político do último século, para além de um dos principais protagonistas durante os «anos de chumbo» italianos, e que alcançou, com Hardt, o estatuto de celebridade intelectual global pelo trabalho que desenvolveram em conjunto. Ao comemorar-se meio século sobre a Revolução dos Cravos, Hardt acaba de publicar The Subversive Seventies (2023), uma reconstrução ambiciosa da política revolucionária nos anos 70 que colocou em destaque a experiência lusófona, levando-o de Moçambique, Guiné-Bissau e Portugal até Itália, Irão e Coreia do Sul, interpelando as inovações conceituais desses movimentos revolucionários globais. Michael Hardt falou à Electra sobre linguagem, activismo, amor, revolução e prisão, e porque é que os movimentos políticos da década de 70 se tornaram hoje mais importantes do que nunca.

AFONSO DIAS RAMOS  Pode falar-nos um pouco sobre a sua formação e o modo como se tornou politicamente activo?

MICHAEL HARDT  Fui dar à teoria política e à crítica através do activismo, embora muita gente faça o caminho inverso. Em adolescente não era militante, ainda não estava suficientemente informado. Mas quando acabei a universidade, com vinte e poucos anos, envolvi-me no activismo que se relacionava com a migração nos EUA. Na altura, no início dos anos 80, era um problema que dizia essencialmente respeito a pessoas oriundas da América Central e que fugiam às guerras patrocinadas pelos EUA, especialmente da Guatemala e de El Salvador. Inicialmente, foi fascinante trabalhar com migrantes e com temas de migração relativos ao imperialismo norte-americano. Mas depois comecei a ir mais para sul, primeiro para a Cidade do México, como parte de um movimento que ajudava os migrantes, e depois para El Salvador. Aquilo que me politizou de facto foi compreender a sua revolução. Este processo teve duas fases. Por um lado, percebi as alegrias de fazer uma revolução e o afecto do activismo que os seus militantes proporcionavam. Por outro, reconheci quão diferente era esse processo revolucionário daquilo que poderia acontecer nos EUA. Isso foi crucial para mim. Comecei a informar-me e entusiasmei-me a ler sobre coisas que tinham acontecido em Itália nos anos 70 e que já tinham acabado. Pareciam-me muito mais próximas dos processos revolucionários que seriam possíveis nos EUA. Isso levou-me numa direcção diferente, a de encontrar um modo de mobilizar as minhas ambições activistas e os meus planos académicos, e de colocar ambos em diálogo.

ADR  O que o levou a aproximar-se dos teóricos italianos, em particular?

MH  Uma das coisas que me ajudou muito e me cativou no trabalho de Toni Negri, por exemplo, foi a impressão de que ele tinha conseguido resolver aquilo que me parecia ser um puzzle impossível: como fundir uma vida académica com uma vida activista? Essa foi parte da razão, ou a inspiração, para querer conhecê-lo pessoalmente.

"Acho muito difícil falar ou escrever sobre o tema do amor."

spinoza

Retrato de Baruch Espinoza, c. 1665 © Fotografia: Scala, Florença / Austrian Archives / Herzogliche Bibliothek, Wolfenbüttel

 

ADR  E como se deu esse encontro?

MH  Eu não era ninguém na altura em que estava a fazer o doutoramento nos EUA. O Toni Negri vivia clandestinamente em França, depois de ter saído da prisão em Itália em 1983. Para que pudesse conhecê-lo, em 1985, traduzi o seu livro sobre Espinosa para inglês [A anomalia selvagem: Poder e potência em Espinosa]. Dessa forma, poderia contactá-lo através de amigos alegando que tinha algumas dúvidas com a tradução (que, obviamente, tinha). Ficar um ano inteiro a traduzir um livro complicado só para tentar conhecer alguém é um processo longo! Mas também foi extraordinário. Às tantas, ele perguntou-me: «Porque não vens a Paris durante uma semana para que possamos discutir as questões de tradução?» Assim fiz e demo-nos muito bem. E depois: «Porque não te mudas para Paris para fazermos coisas juntos?» Pareceu-me excelente ideia. Mudei-me para Paris e começámos a trabalhar.

ADR  Que significado tem para si o processo colaborativo de escrita?

MH  Depois de ter vivido em Paris, arranjei emprego e voltei para os EUA. Sentia-me frustrado com a ideia da política praticada pela teoria crítica aqui. Andava à procura de formas de lidar politicamente com o trabalho filosófico que me interessava. Na altura, fui a uma conferência sobre política e desconstrução, e fiquei incrivelmente deprimido com o que a política significava nesse contexto. Telefonei logo para a Junta de Prisões do Estado da Califórnia (tinha uma bolsa de pós-doutoramento em Los Angeles) e perguntei se, de uma forma ou de outra, podia dar aulas lá. Parecia-me ser um antídoto. Não que trabalhar na prisão seja, em si mesmo, algo de revolucionário, mas pareceu-me estar muito mais assente num contexto real. E por isso, durante vários anos, dei aulas em diferentes prisões dos EUA, embora fosse muito difícil dado que só as figuras religiosas têm um acesso facilitado ao meio prisional. Mais tarde, consegui dar aulas a presidiários com formação e que conseguiam discutir Foucault e Althusser, essas ideias teóricas e as próprias situações em que se encontravam. Foi excelente e, do ponto de vista teórico, esclarecedor. Foi também um desafio político pensar nos efeitos do empoderamento e do desempoderamento ou na construção do sujeito pela instituição com os próprios sujeitos que estavam nessas instituições, e ver como estes desenvolviam as ideias através das suas experiências e possibilidades para não serem tomados como passivos ou impotentes. Continuo sem resposta para isso, mas achei tudo extremamente útil.

Maquiaveli

Santi di Tito, Ritratto di Nicolau Maquiavel [Retrato de Niccolò Machiavelli], 1575–1599 © Fotografia: Scala, Florença / Palazzo Vecchio, Florença

 

ADR  Já que falamos de escrita, publicou em tempos um artigo sobre Jean Genet, «Prison Time», em que associava a instituição da prisão à prisão da linguagem. Desde então, sei que trabalhou em algumas prisões nos EUA, organizando grupos de leitura para discutir Michel Foucault e Louis Althusser com os reclusos. Como surgiu essa oportunidade e como vê essa experiência hoje?

MH  Depois de ter vivido em Paris, arranjei emprego e voltei para os EUA. Sentia-me frustrado com a ideia da política praticada pela teoria crítica aqui. Andava à procura de formas de lidar politicamente com o trabalho filosófico que me interessava. Na altura, fui a uma conferência sobre política e desconstrução, e fiquei incrivelmente deprimido com o que a política significava nesse contexto. Telefonei logo para a Junta de Prisões do Estado da Califórnia (tinha uma bolsa de pós-doutoramento em Los Angeles) e perguntei se, de uma forma ou de outra, podia dar aulas lá. Parecia-me ser um antídoto. Não que trabalhar na prisão seja, em si mesmo, algo de revolucionário, mas pareceu-me estar muito mais assente num contexto real. E por isso, durante vários anos, dei aulas em diferentes prisões dos EUA, embora fosse muito difícil dado que só as figuras religiosas têm um acesso facilitado ao meio prisional. Mais tarde, consegui dar aulas a presidiários com formação e que conseguiam discutir Foucault e Althusser, essas ideias teóricas e as próprias situações em que se encontravam. Foi excelente e, do ponto de vista teórico, esclarecedor. Foi também um desafio político pensar nos efeitos do empoderamento e do desempoderamento ou na construção do sujeito pela instituição com os próprios sujeitos que estavam nessas instituições, e ver como estes desenvolviam as ideias através das suas experiências e possibilidades para não serem tomados como passivos ou impotentes. Continuo sem resposta para isso, mas achei tudo extremamente útil.

ADR  Recentemente, trabalhou muito sobre o potencial teórico do amor. O que faz dele um conceito tão politicamente interessante hoje em dia?

MH  Em primeiro lugar, acho muito difícil falar ou escrever sobre o tema do amor. Apercebi-me de um aspecto interessante: há um verdadeiro fosso entre os activistas jovens que pensam no amor como um objecto óbvio e natural da política e a maioria dos outros activistas, que talvez estejam mais enredados em teoria crítica e tenham muita dificuldade em aceitar esse tipo de discurso: parece-lhes algo de religioso, sentimental ou romântico, mas não politicamente sério. Não é fácil tentar conjugar os dois lados, mas achei que era útil «des-romantizar» este discurso. Por um lado, a acção e organização políticas prendem-se com o afecto. Ou seja, a política não é apenas uma questão de razão ou de interesse. As pessoas percebem esta parte facilmente. Mas quanto ao amor em si, acho mais fácil trabalhá-lo com recurso a pensadores muito pouco sentimentais e não-religiosos. Neste sentido, Maquiavel é perfeito, porque reconhece o poder político do amor, embora nem sempre, claro, devido aos seus potenciais libertadores. O Príncipe usa o amor de forma estratégica, mas não deixa de ser importante para ele. O amor e o medo funcionam como afectos primários, e ocupam uma importância política central no mundo de Maquiavel. Mas é muito mais difícil compreender a concepção de amor e política em Espinosa, que é profundamente não-sentimental e até mesmo não-religioso. O que é excelente nele é que nos fornece uma concepção clara do amor, embora complexa. Em primeiro lugar, é preciso lidar com Espinosa através do conceito de «alegria», o que para ele significa o aumento do nosso poder, sendo bastante maquiavélico nesse sentido. Mas o amor é o aumento do nosso poder com o reconhecimento efectivo de que provém de uma causa externa. Existe algo que reconhece e cria em si um incremento no seu poder de pensar e agir. Mas o aumento do nosso poder não significa um aumento da nossa capacidade de controlar outras pessoas. Significa que se é capaz de pensar melhor, de uma forma mais clara e poderosa, e de agir em consonância. Embora tudo isto seja extremamente útil, trata-se de uma maneira complicada de abordar o amor e a centralidade que ocupa na actividade política. Espinosa reconhece, simultaneamente, que o amor funciona como uma ferramenta de análise política e também como forma de organizar aquilo a que nos podemos agarrar que gere um aumento do nosso poder. Esta ausência de sentimentalismo é útil. Poderíamos estar a ter uma conversa muito diferente sobre o amor se ultrapassássemos essa barreira que descrevi ao início. O modo como tenho sentido isso passa por uma falta de compreensão sempre que falo de amor na política, ou por um menosprezo do género «ele tem andado a conviver com demasiados italianos» ou então «converteu-se ao cristianismo». Esse tipo de desconsiderações…

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